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Contos-->Foi a Bolsa -- 02/04/2000 - 15:42 (Malva Barros Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Foi a bolsa.

Malva Barros Oliveira

Não estamos falando de uma bolsa qualquer, dessas de couro, napa ou plástico. Sei que devido a este conto está sendo escrito por mulher, tem muita gente pensando que vou começar a falar daquela bolsa predileta. Grande engano, na história de Ester não cabe, no momento, este tipo de acessório. Trata-se de algo mais sério, bem mais sério. Veja bem, não estou dizendo que bolsa feminina não seja algo que deve ser levado a sério. É claro que deve, tenho noção do quanto é importante para nós. Mas agora bolsa deste tipo, não vem ao caso.
Ester era uma mulher calada, abstraída. Parecia viver com seus parcos cinqüenta e poucos quilos e mesmo número de anos, num mundo todo seu. Longínquo, distante por demais do resto do mundo. Quando a chamavam, saía vagarosamente dele, sorrindo, como se fosse muito feliz de onde vinha. Atendia a necessidade do momento e voltava rapidamente para seu doce mundo. Gostava imensamente de deitar numa rede no quintal ou enrolar-se no sofá da sala. Olhos fechados, ar tranqüilo lá se ia Ester para o mais recôndito paraíso.
Era casada com Rommeu, isso mesmo com dois emes, talvez isso explique porque de Romeu o infeliz não tinha absolutamente nada. Era homem rude, bom chefe de família, grande trabalhador recentemente aposentado. Trabalhou muito na vida, era seu vício como também o de poupar. Cada tostão que não precisava gastar no sustento da casa, era religiosamente depositado. Era homem prático, com objetivos bem definidos. Queria guardar para mais tarde. Não sabia o que o futuro lhe reservaria.
Esta ladainha Ester escutava há de trinta anos. Era freqüente e tão certa quanto o pão nosso de cada dia. Às vezes imaginava de que material seria feita, pois não se desgastava nem se alterava com o tempo. Rommeu a falara tanto que Ester a sabia de cor, só que não mais a ouvia. Enquanto olhava a boca de Rommeu abrindo e fechando, estava longe, naquele mundo de fantasias, com um lânguido sorriso no rosto. Parecia até que prestava atenção, mas para que? Sabia sem a menor margem de erro qual a palavra que ele diria em seguida e em que tom sairia.
“E agora meu Deus? Pensava Éster, ele aposentado, entronizado em casa o dia inteiro, andando de pijama pra lá e pra cá, arrastando os malditos chinelos sem ter o que fazer. Só me rodeando, puxando prosa, a mesma prosa sensaborona de fins de tarde,de sábados, domingos e feriados inteiros”. Assim pensava e suspirava Ester enquanto no rosto deixava transparecer uma atenção desmedida às tolices verbalizadas pelo marido...
Nós que estamos de fora, podemos achar falta de educação e que Ester deveria prestar uma atenção real em Rommeu. Mas nada temos com isso, o marido era dela, que bem o conhecia. Já percebera há muito que ele só a usava como pano de fundo, uma paisagem onde gostava de declamar seus textos. Vivia tão satisfeito com o conteúdo deles, que nem pensava em mudar-lhes a forma ou o estilo. Grande Rommeu! Vivia pleno em sua sabedoria.
Olhava a vida dos vizinhos como ninguém! Gostava de saber tudo e sempre nos mínimos detalhes. Mais dos desacertos é claro, e vibrava pelo simples fato de nunca ter sido atingido por um deles. Tudo ele controlava, nada de ruim poderia vir a acontecer com a família dele, prognosticava. Era um homem prevenido, e como Ester de longa data sabia, “um homem prevenido vale por dois.”
A vida intelectual de Rommeu era a soma do Saara com as grandes planícies lunares. Um grande e absoluto nada. Não lia, não ouvia, não aprendia. Só discursava indefinidamente sobre os mesmos temas. Aquela verborréia tão enervantemente cansativa mostrou a Ester um caminho para onde fugir. Já que sair de casa para passear sozinha era impossível e com ele muito pouco, para não gastar dinheiro, Ester terminou por encontrar o caminho para sua Pasárgada dentro de si mesma. Em seus devaneios ora era princesa, ora mendiga num momento sofredora, noutros ditosa pelo bafejo da sorte ou do merecimento. Às vezes brasileira, na maioria cidadã do mundo. Doces devaneios que tiravam da mediocridade a ex-aluna do Colégio Modelo, líder de classe, chefe de turma.
Como foi se casar com Rommeu não importa, será uma outra história. O fato é que casou. Saiu de uma família que não admitia sequer pensar em divórcio, entrou noutra em que o marido era bom como um deus! Já nos primeiros meses entendeu que tomara um caminho sem volta. No inicio quando reclamava, o pai dava de ombros e dizia sem querer ouvir resposta ter sido ela quem o escolheu. A mãe falava que homem é tudo igual, só muda mesmo nome e endereço. Pobre Ester! Pobre? Não, Ester não era pobre. Não de mente, alma, e espírito. Gostava muito de ler, inventar suas histórias, transcreve-las bem como a seus inúmeros poemas.
Estranhamente adorava ir ao médico, ao dentista. Pois lá chegando, escondia na tira-colo as revistas disponíveis encontradas nos consultórios. Em casa lia até decorar, não havia assunto que desconhecesse. Só faltava mesmo era com quem conversar. Assistir ao jornal na televisão era sagrado, tanto o da manhã, quanto do meio dia e o nacional. Por seu gosto até o das onze assistiria, mas o marido queria que desligasse a televisão para “não gastar os olhos e a energia”. Como ele gostava de rir desta sua “citação”!
Um belo dia chegou Tadeu, um primo de quem Rommeu gostava muito, ria dizendo “que era porque o nome dele rima com o meu”, Ester cansada da velha piada já nem escondia o fato de não rir. Rommeu ria tanto que nem percebia. Tadeu também aposentado, visitando o primo e conferia quanto guardaram no decorrer da vida de trabalho. Certo dia, o saldo de Tadeu deu um banho no de Romeu. “Como é que pode primo? - Disse nosso anti-herói -Nós ganhamos praticamente o mesmo valor, temos igual número de filhos, como é que você tem um valor deste na poupança?” Tadeu todo satisfeito confessou abrindo o peito: “é a bolsa primo, é a bolsa”.
Foi um custo para Tadeu fazer o primo entender o mecanismo. Rommeu cofiando a barba mal feita dizia: “sei não primo, sei não”. Mas os lucros estavam ali, no extrato da conta. “Era preto no branco”, não se discutia. Tadeu ficou de trazer o corretor, muito amigo, que se encarregava de aplicar seu dinheiro.Era muito correto, garantido.
O corretor veio, Rommeu se convenceu. O sujeito era bom vendedor, era ladino. Assinados os papéis foi aquela cervejada por conta dos bons lucros que certamente viriam. A conta é claro, foi dividida. Passou-se um mês. Bom lucro, estupendo. Rommeu começou a tentar ler e entender o que estava no jornal. Ester quis ajudar, foi cortada pelo marido, que considerava a página econômica assunto sério, de homem, que mulher não entendia nada daquilo.
Ela voltou para seus sonhos. Agradecida à fada bolsa que mantinha o marido quieto enquanto tentava ler o jornal. Mas a dificuldade era tanta que ele dormia. De três a quatro meses se passaram, ia tudo transcorrendo normalmente. Até que um belo e triste dia chega Tadeu ofegante, perguntando a Rommeu quanto perdeu. Foi um sururu.
Conseguiram encontrar o corretor, que amarelo, meio assustado, dizia a titulo de desculpa que também perdeu muito. Que a bolsa despencou. A culpa não era sua... Foi a saída de dólares do Brasil que originou a queda. Que os fundos de pensão que perderam muito ... as empresas também na hecatombe da Ásia... sacaram das suas aplicações para ... vermelhos na contabilidade.
Esta explicação não foi totalmente ouvida por Rommeu, ele caíra no chão antes que a explicação do corretor chegasse à Ásia. Foi a primeira vez que se viu Ester correr. Telefonou para o taxi, pediu que voasse para o hospital. Que nada, não deu tempo. Era uma vez um Rommeu.
Ester se organizou rapidamente, juntou o que restou na poupança, pagou um enterro decente para o finado Rommeu e com o saldo deu uma arrumada na casa e reformou o guarda roupa nos dois sentidos. Está uma viúva bonita de se ver, sempre alinhada, não usa luto. Já cansou de passear, visitou todos os parentes, foi a todas as exposições de que leu a respeito. Gosta muito de ir ao cinema, adora teatro, qualquer espetáculo não é para ela, lê antes para se informar a respeito. Assina duas ou três revistas, duas até semanais e outra de moda. Comprou uma rede no Ceará, lembrança de uma de suas viagens e armou na varanda. É onde gosta de ficar lendo e vendo a vida passar entre uma viagem e outra. O tempo por sua vez, passou também e o fez agradavelmente.
Quando lhe perguntam de que morreu o Rommeu, Ester pára mansamente, como que para lembrar de quem é que estão falando e responde com aquela meiguice que lhe é peculiar: “Foi a bolsa”. E vira a página do jornal do dia que ainda não leu. Quer saber o que está se passando agora, neste seu mundo, onde vive atenta, tão ligada em tudo. Este não é o fim é o recomeço da vida de Ester. Bem que dizem que quando o cônjuge não é lá muito do agrado, mesmo morrendo o infeliz viúvo... É ele!



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